Com ajuda de fonoaudiólogo, cirurgiã é considerada Robin Hood de bisturi


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Por Nathalia Ziernkiewicz

A paulistana Rosângela Costa diz que “o céu escureceu” no dia em que deu à luz Jéssica, hoje com 18 anos. Ninguém no hospital da periferia de Osasco sabia explicar por que a menina nascera sem nariz, cega de um olho e com o maxilar incompleto.

Rosângela diz que sua vontade era botar a criança para dentro, deixar que terminasse de se desenvolver, para então pari-Ia novamente. Só lhe restou voltar para casa. Em vez da filha nos braços, carregava uma sentença. “Com sorte, sua bebê terá dez dias de vida”, disseram os médicos. Jéssica contrariou o prognóstico e, quatro meses depois, trocou o leito da Unidade de Terapia Intensiva pelo colo de Rosângela. Na peregrinação por tratamento, a mãe soube de uma médica que trata desses casos gratuitamente. “Foi como se o sol aparecesse de novo”, diz Rosângela.

A cirurgiã plástica Vera Lúcia Cardim, de 59 anos, é uma versão médica de Robin Hood personagem que roubava dos ricos para dar aos pobres. Só que dentro da lei. Ver a usa parte do dinheiro pago pelos pacientes de seu consultório particular para financiar cirurgias restauradoras em pessoas como Jéssica. De um lado, ela aplaca a vaidade de seus pacientes adultos com silicones e lipoaspirações. De outro, ajuda a reconstruir a vida de crianças carentes nascidas com malformações faciais. As deformidades podem ser causadas por erros genéticos, desnutrição pelo uso de drogas durante a gravidez e até pela exposição a aparelhos de raios X na gestação. “A rotina do consultório particular enche minha geladeira, não meu coração”, diz Vera.

Em 2006, ela fundou a Facial Anomalies Center, entidade conhecida pela sigla FAC.E., que atende pacientes carentes. Cerca de 4 mil pessoas já passaram por lá. Suas feições e vida foram retraçadas pela equipe de Vera, composta de um fonoaudiólogo, um ortodontista, um psicólogo e quatro cirurgiões.

Todos voluntários. As cirurgias fazem mais que corrigir as complicações causadas pelas malformações, como alterações respiratórias. Elas ajudam a incluir socialmente as crianças que, apesar da aparência distoante dos colegas, são intelectualmente tão capazes quanto qualquer um. Muitas vezes, é o preconceito, e não as alterações físicas, que atravanca o desenvolvimento dessas crianças. “Elas têm um potencial incrível, mas são tolhidas pelo preconceito dos outros contra suas feições”, diz Vera. Aos 18 anos, Jéssica, que começou a ser atendida aos 11 meses, leva uma vida social normal. Diz estar preocupada com seus “ficantes”. Concluiu o ensino médio e quer se tornar médica, como Vera. Ela já passou por nove cirurgias. O nariz foi construí do com partes do quadril e cartilagens da orelha. A décima operação está marcada. Será no maxilar, que lhe deixa com dentes encavalados e dificuldade na fala.

A causa não desperta simpatia com facilidade. Vera, nascida em Bagé, no Rio Grande do Sul, veio para São Paulo em 1977 para estagiar com o pioneiro da cirurgia craniofacial no Brasil.

Atendia de graça no Hospital Beneficência Portuguesa. Só em 1997 conseguiu , IJ1;rrebanhar dois alunos que aceitaram ,ajudar gratuitamente nas cirurgias de pacientes carentes. O consultor financeiro Getúlio Vargas, de 35 anos, conhece de perto as dificuldades vividas por pessoas como Jéssica. Seus traços, pouco comuns e causados por uma síndrome chamada Crouzon, renderam-lhe o apelido de ET na infância. Os olhos saltados e o nariz desproporcional, que despertavam a atenção dos colegas, foram corrigidos com 19 cirurgias, pagas pelo plano de saúde dos pais. Como Vargas sabe que nem todos têm a sorte de contar com esse apoio, ajudou Vera a fundar a EA.C.E.

Vera diz desembolsar R$ 5 mil por mês para manter a entidade que opera, atualmente, 80 pacientes por ano. Segundo ela, com mais verba, teria capacidade para ajudar o dobro de pessoas. Gente como a “menina monstro”, da Ilha do Frade, na Bahia. Com uma fissura enorme na face, ela era escondida num casebre da vila de pescadores e só sabia grunhir. Um turista, ao conhecer sua história, pagou a viagem, e Vera, o tratamento. A equipe teve, praticamente, de desmontar o crânio da garota para reconfigurá-Io novamente. O processo envolveu quase uma dezena de cirurgias. O resultado não poderia trazer mais satisfação a Vera. A menina, que vivia escondida em uma ilha na Bahia, incapaz de falar, hoje é psicóloga.

Fonte: Revista

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